Empresária da favela cria calcinhas para mulheres trans

Silvana Bento trabalhava no banco de sangue de um hospital a zona sul de São Paulo quando teve seu primeiro contato com os problemas causados pela falta de peças íntimas adequadas para mulheres trans. Elas precisavam recorrer a bandagens, fitas adesivas e até mesmo cola instantânea para se sentirem confortáveis com o corpo.

Ela conta que mulheres trans e travestis falavam a ela que seguravam xixi por horas para manter a bandagem presa ao corpo durante o dia e que, por isso, muitas iam parar no hospital com infecção urinária e insuficiência renal. “Uma das meninas que fazia transfusão comigo morreu na fila do transplante de rim. Fiquei devastada”, conta Silvana em entrevista à Folha de S.Paulo.

Como profissional da saúde, começou a pensar em soluções para melhorar a qualidade de vida desse público e, em 2016, desenhou uma calcinha que possui uma espécie de bolsa para acomodar a genitália de maneira saudável e que não marcasse nas roupas.

A expressão “aquendar a neca”, popular na comunidade LGBTQIA+, se refere ao ato de esconder o pênis e os testículos para que não fiquem visíveis através das roupas.

Desenvolvimento do projeto
Para dar início à produção dessa peça, entretanto, precisou de ajuda, que demorou a encontrar. “Procurei costureiras daqui de Guaianases para fazer as peças-piloto, eu não sei pregar um botão. Só que a maioria delas não quis produzir quando eu disse o que era”, explica ela, contando ainda que uma delas chegou a pensar que o design era de roupa para gato e, outra, que “não era de Deus”.

A calcinha só pôde ser produzida, quando encontrou uma designer de moda com uma pequena fábrica de bichos de pelúcia e bonecos de pano. “Ela mandou o modelo e vi que se tratava de um produto novo. Costurei sem questionar”, diz Renata Silva à Folha. “É uma peça que é fácil de vestir, confortável, ajustável e aquenda.”

As duas começaram a produzir os protótipos e, para conferir a usabilidade, contrataram amigos LGBTQIA da filha de Silvana, Natália Pietra, que é da comunidade e ensinou à mãe alguns dos vocabulários utilizados pela comunidade. “Dava R$ 100 para experimentarem as calcinhas. Criei 16 variações, usando lycra e renda, além da moda praia”, conta Silvana.

Em 2017, então, nascia a Trucss. Silvana largou a profissão como técnica em hemoterapia, patenteou o produto e registrou o nome da marca. Atualmente, a Trucss conta com modelos para o dia a dia, esporte e moda praia em uma variedade de tamanhos, inclusive, infantil.

Um outro público que se aproximou da marca foram pais e mães de crianças trans. “Comecei a fazer protótipos para atender ao público infantil”, diz Silvana. “A aquendação não é igual a das mulheres, pois elas estão em fase de crescimento e não pode causar deformidade.”

Sucesso da marca
A divulgação nas redes sociais foi um dos fatores que trouxeram muitos consumidores para a Trucss, inclusive famosas. “Linn da Quebrada usou minhas peças no Big Brother”, explica Silvana, que chegou a abrir uma loja física na Rua Augusta, localizada na região central de São Paulo, mas que teve que ser fechada por conta da pandemia e a baixa nos faturamentos.

A empresária conseguiu voltar à ativa com o apoio de programas de aceleração, mas conta que, em um deles, seu público foi alvo de discriminação. Com ticket médio de R$ 100, foi questionada sobre o poder aquisitivo de suas clientes. “Falaram para eu mudar de público, porque trans eram analfabetas, prostitutas e não teriam dinheiro para pagar por meu produto”, relata. Ela conta que chegou a rebater, mas foi um processo desgastante.

Em abril deste ano, ela esteve na Expo Favela e foi uma das dez selecionadas para participar de um reality show na TV Globo que será exibido aos sábados no programa É de Casa. A competição terá como prêmio R$ 80 mil.

Para suas clientes, as calcinhas da Trucss são revolucionárias. “Cansei de me machucar e queimar a pele”, conta Mar Moraes, atriz e modelo, sobre as estratégias para aquendar a neca. “Era constrangedor ir ao banheiro e agora posso ir à praia, o biquíni é cavado como a gente gosta e fico aquendadíssima”, completa.

Ela, que tirou fotos para divulgar entre as amigas no Rio de Janeiro, também afirma que as calcinhas e biquínis têm efeito psicológico, aumentando a autoestima, e que é bom ver que marcas e pessoas aliadas da comunidade LGBTQIA estejam crescendo. “Achei interessante porque é uma mulher cis pensando na gente dessa maneira”, conta.

Aliada e ativista da causa trans
Segundo um relatório das Nações Unidas, o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo. Por este motivo, há quem relate que aquendar é, além de uma questão estética, é de sobrevivência. “É o artifício que criamos em busca da passibilidade. É o ser trans, mas aparentar socialmente uma mulher cisgênero. Com o uso da estética, maquiagem, vestimenta e pelo ‘aquendar a neca’, combatemos a transfobia sistêmica em todos os espaços que nós transitamos”, explica Nosli Melissa de Jesus Bento em entrevista ao portal Campo Grande News.

A transfobia é um dos motivos pelos quais mulheres trans e travestis evitam procurar ajuda médica. Silvana conta que está em busca da aprovação de seus produtos na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para que possam ser distribuidos gratuitamente pelo SUS, o que pode servir de incentivo para que pessoas trans busquem mais orientação sobre sua saúde e para que profissionais da saúde possam ter maior convívio com a comunidade LGBTQIA . “Mulheres trans não procuram ajuda médica porque não são bem tratadas, ninguém sabe como lidar”, afirma.

Atualmente, Silvana diz que se reconhece como ativista da causa trans. “Costumam falar que não vendo calcinhas, realizo sonhos. Isso enche o coração”, conta ela. A loja virtual da Trucss está ativa e conta com vários modelos, produtos e kits para maior praticidade das usuárias. Lá, também é possível encontrar um blog, no qual há diversos textos auxiliando na escolha do modelo ideal e dicas sobre como utilizá-los.

*Estagiária sob a supervisão de Márcia Maria Cruz

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