Silvana Bento, de 46 anos, nunca aprendeu a costurar. Como ela mesma diz, não sabe pregar um botão sequer. Isso não a impediu, no entanto, de criar uma empresa de fabricação e venda de calcinhas e outras peças íntimas para um público específico: mulheres trans e travestis. Tudo começou quando a empresária, enfermeira de formação, trabalhava num banco de sangue de um hospital de São Paulo. Ali, conheceu várias dessas mulheres que realizavam tratamento de hemodiálise. “Descobri que muitas delas morriam por não ir ao banheiro! Essas mulheres usam fita adesiva ou até cola instantânea para puxar e prender para trás a genitália. Se saem, não consumem líquidos, para não ter que ir ao banheiro. Isso acaba com os rins”, explica Silvana, em conversa com CLAUDIA. Ela é uma das empreendedoras de um grupo de mulheres incríveis que você conhecerá no projeto Potencializadoras, uma parceria especial entre CLAUDIA, PretaHub e Meta.
Quando uma das pacientes que acompanhava faleceu, em 2016, Silvana decidiu fazer algo a respeito. Chegou na casa que divide com o marido e quatro filhos em Guaianases, no extremo leste de São Paulo, cortou um pedaço do tule da saia de balé da filha e fez o protótipo de uma calcinha em formato afunilado, que permitisse esconder pênis e testículos atrás da virilha, sem uso de esparadrapos ou outros materiais. Quando procurou costureiras na região para fabricar a peça, elas não entenderam o que ela pretendia ou, pior, se recusaram a fazê-las por puro preconceito. O projeto só deu certo quando Silvana encontrou uma designer de moda com uma pequena fábrica de bichos de pelúcia e bonecos de pano, que topou a empreitada. Em 2017, nascia oficialmente a Trucss, que cria e vende calcinhas, maiôs e biquínis para que mulheres trans e travestis possam “aquendar a neca” com segurança.
A expressão, que vem do pajubá, dialeto usado por pessoas da comunidade LGBTQIAP+, especialmente trans e travestis, se refere exatamente ao hábito de esconder a genitália nas peças íntimas. Silvana aprendeu com sua filha, lésbica, e decidiu adotá-la no site e nas redes sociais da Trucss. “Eu sou bem coração, gosto de acolher as pessoas. Não quis mudar o vocabulário delas por termos normativos. Assim, na Trucss, elas sabem que estão em casa”, sorri. O próprio nome da marca remete ao “truque” de aquendar. Hoje, além de encomendas personalizadas, a empresa comercializa 16 modelagens e numerações feitas em lycra e renda, além da moda praia.
“Cada peça tem uma espécia de funil onde se coloca a neca e, com as duas mãos, se empurra para trás, prendendo esse funil no fundo da calcinha com colchetes. Um elástico na cintura, com regulador, ajuda a garantir o conforto e o tamanho ideal para cada corpo”, explica Silvana, que se orgulha de ter entre suas clientes famosas como Linn da Quebrada. “Ela já era minha cliente antes de entrar no BBB [Big Brother Brasil] e levou 50 peças para o programa, entre calcinhas e roupas de banho”, conta. Quando começou com a Trucss, ela contratou amigas da filha para experimentar os modelos por R$ 100 e, assim, foi aprimorando os produtos.
Até hoje, a marca é, essencialmente, uma empresa familiar. “Eu crio as peças, meu marido é motorista da empresa, meus filhos ajudam na logística, fotos e divulgação. Funcionamos assim porque ainda não tenho condições de contratar uma mulher trans, mas meu grande é ajudar na empregabilidade delas”, diz. O Mapeamento das Pessoas Trans, realizado no ano passado em São Paulo, pôs em números uma triste realidade já conhecida: muitas mulheres trans e travestis saem cedo de casa e abandonam os estudos, restando à maioria exercer atividades relacionadas ao mercado do sexo. Ou outras áreas, mas dentro do mercado de trabalho informal.
Silvana quer ajudar a mudar esse cenário e, também por isso, largou os trabalhos em dois hospitais da capital paulistana para abrir a Trucss. “Conversei com minha família e disse que talvez precisássemos cortar a televisão de canais pagos, comer ovo a semana toda, mas que eu queria seguir esse desejo.” Mulher negra e periférica, ela mesma sentiu, no entanto, dificuldade em assumir seu empreendedorismo. “Quando saí do hospital, não falava que era empreendedora, dizia que estava desempregada e tinha resolvido vender calcinhas para as meninas.” Hoje, seu maior sonho é que as calcinhas da marca sejam distribuídas pelo SUS (Sistema Único de Saúde), para que toda a população que necessita tenha acesso a elas. Sem empreendedorismo é, além de tudo, uma missão social.
O projeto Potencializadoras é uma parceria do PretaHub, da CLAUDIA e da Meta para contar histórias de mulheres negras empreendedoras. A fotógrafa baiana Helen Salomão e Wendy Andrade se uniram para retratar 15 mulheres que fazem parte da Aceleração de Negócios de Empreendedoras Negras, iniciativa idealizada pela Meta e pela PretaHub.
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