Silvana Bento criou uma calcinha para ajudar mulheres trans a disfarçarem pênis e testículos. Ela não frequentou escolas de moda nem era ativista da causa. Moradora de Guaianases, no extremo leste de São Paulo, negra e mãe de quatro filhos, teve a ideia quando trabalhava no banco de sangue de um hospital.
“Uma das meninas que fazia transfusão comigo morreu na fila do transplante de rim. Fiquei devastada.”
Mulheres trans e travestis confidenciavam que usavam esparadrapos e até cola instantânea para deixar a virilha sem volume. Seguravam xixi por horas para manter a bandagem presa ao corpo durante o dia. Por isso, iam parar no hospital com infecção urinária e insuficiência renal.
“Eu me perguntava como é que as pessoas morriam por isso”, diz a técnica em hemoterapia e hoje dona da marca de moda Trucss.
Em 2016, Silvana Bento, 45, desenhou uma calcinha com espécie de bolsa que acomoda a genitália de forma saudável e não marca na roupa. Patenteou a invenção. Em 2017, pegou o último ônibus para seu plantão noturno em um hospital na zona sul de São Paulo. Largou a profissão. Nascia Silvana Trucss, nome registrado.
Enquanto dava vida ao novo empreendimento, o marido pagava as contas da casa como motorista de aplicativo. Os filhos mais velhos “ajudavam como podiam”.
O primeiro desafio logo veio. “Procurei costureiras daqui de Guaianases para fazer as peças-piloto, eu não sei pregar um botão. Só que a maioria delas não quis produzir quando eu disse o que era”.
Silvana lembra que uma costureira chegou a pensar que era roupinha para gato. Outra disse que a calcinha “não era de Deus.”
A mão amiga veio de uma designer de moda com uma pequena fábrica de bichos de pelúcia e bonecos de pano. “Ela mandou o modelo e vi que se tratava de um produto novo. Costurei sem questionar”, afirma Renata Silva, 40. “É uma peça que é fácil de vestir, confortável, ajustável e aquenda.”
Aquendar significa esconder pênis e testículos. E estes são sinônimos de neca. Vocabulário que Silvana aprendeu com a filha, Natália Pietra, de 23 anos, que é lésbica.
“Temos nossa forma de nos expressar, mostrar o que estamos sentindo, e minha mãe sempre foi aberta”, conta Natália, que nos momentos de folga compõe rap.
Muitas vezes foi errando que aprendi / E todas as vezes você estava ali / Um sonho realizado todos dias te ver sorrir / Minha rainha, existência que me faz resistir.
Silvana contratou amigos LGBTQIA+ da filha para fazer os protótipos. “Dava R$ 100 para experimentarem as calcinhas. Criei 16 variações, usando lycra e renda, além da moda praia”, diz.
O boca-a-boca e as redes sociais trouxeram consumidores para a marca. A empresária fala com orgulho de sua cliente mais famosa: “Linn da Quebrada usou minhas peças no Big Brother.”
Mar Moraes, 35, tirou fotos para divulgar entre as amigas no Rio de Janeiro. “Achei interessante porque é uma mulher cis pensando na gente dessa maneira”, afirma a modelo e atriz.
“Cansei de me machucar e queimar a pele”, conta sobre as estratégias para esconder a neca. “Era constrangedor ir ao banheiro e agora posso ir à praia, o biquíni é cavado como a gente gosta e fico aquendadíssima.”
Além do conforto, Mar Moraes diz que as calcinhas e biquínis têm efeito psicológico. “A autoestima vai em Júpiter.”
Com vendas online e ticket médio de R$ 100, Silvana abriu uma loja na Rua Augusta, região central de São Paulo, pouco antes da pandemia. Não durou. A ordem para manter as portas fechadas trouxe dívidas à família, que viu o faturamento da Trucss cair 70%.
Outro público que se aproximou da marca foram pais e mães de crianças trans. “Comecei a fazer protótipos para atender ao público infantil”, diz Silvana. “A aquendação não é igual a das mulheres, pois elas estão em fase de crescimento e não pode causar deformidade.”
Com apoio de programas de aceleração, a empresária conseguiu se reerguer. Mas em um deles sofreu discriminação.
“Falaram para eu mudar de público porque trans eram analfabetas, prostitutas e não teriam dinheiro para pagar por meu produto.”
Como negra e periférica, não era a primeira vez que Silvana ouvia palavras agressivas. “Não fiquei calada, debati. Mas foi um desgaste desnecessário.”
Em abril, ela esteve na Expo Favela e foi uma das dez empreendedoras escolhidas para fazer parte de um reality show na TV Globo. A competição está sendo exibida no programa “É de Casa”, aos sábados, e terá como prêmio R$ 80 mil.
E se Linn da Quebrada canta “Eu matei o Júnior” em referência a seu passado, Silvana Trucss não apagou a profissional de saúde que colhia bolsas de sangue em hospitais. A partir dessa experiência é que pensa em escalar o negócio.
“Mulheres trans não procuram ajuda médica porque não são bem tratadas, ninguém sabe como lidar. Quero conseguir o registro da calcinha na Anvisa para que elas consigam peças gratuitamente no SUS.”
” Mulheres trans não procuram ajuda médica porque não são bem tratadas, ninguém sabe como lidar. “
Segundo ela, seria um incentivo tanto para que elas busquem mais orientação sobre sua saúde quanto para que profissionais tenham convívio com o público LGBTQIA+.
“Meu dom é por minha cara na marca e quebrar barreiras, trazendo mulheres trans comigo”, afirma Silvana, que agora se reconhece como ativista da causa. “Costumam falar que não vendo calcinhas, realizo sonhos. Isso enche o coração.”
Confira a Matéria Original na Integra em: https://www1.folha.uol.com.br/folha-social-mais/2022/04/empresaria-da-favela-cria-calcinha-para-mulheres-trans.shtml