O WTC Events Center, espaço que já serviu de locação para programas de TV e é uma das estruturas mais concorridas para a realização de encontros corporativos na porção abastada da Zona Sul, se transformará em um centro de negócios para empreendedores de periferias entre os dias 17 e 19 de março, quando acontece a Expo Favela São Paulo 2023. O megaevento, que ajuda a impulsionar iniciativas como as das páginas a seguir, apresentadas na última edição, inclui uma extensa programação, com direito a palestras, workshops, rodadas de negócios em que empreendedores tentam captar investimento, apresentação de startups, shows e até um baile de favela. A lista de personalidades que irão participar inclui de ex- BBBs como Thelminha e Babu Santana aos ministros do governo Lula Silvio Almeida (Direitos Humanos) e Margareth Menezes (Cultura), passando pelos apresentadores de TV Amaury Júnior e Luciano Huck, e empresários como Abilio Diniz. Serão 300 expositores, com uma expectativa de público de 15 000 pessoas por dia.
Criador do evento, Celso Athayde, 60 anos, ex-coordenador da Cufa (Central Única das Favelas) e fundador da Favela Holding, que reúne empresas que atuam no desenvolvimento das comunidades, afirma que a Expo Favela foi concebida para aumentar a conexão dos empreendedores da favela com o asfalto, que é como ele denomina aqueles que não moram nas comunidades. Essa mescla é refletida na programação. Um dos encontros será o de Abilio Diniz com o produtor e empresário Konrad Dantas, o KondZilla. (confira destaques ao final do texto). “Quando fui para o Fórum Econômico Mundial (em junho de 2022), eu percebi que era o primeiro favelado a ganhar um prêmio de empreendedor de impacto e inovação (a premiação foi concedida pela Fundação Schwab). E isso não pode ser um monopólio do bem, pre- cisa ser compartilhado”, afirma Athayde. Uma das frases de efeito mais usadas por ele é a de que a favela não é carência, mas sim potência. Dados do Data Favela, instituto de pesquisa especializado nessa população, indicam que, dos 17 milhões de pessoas vivendo em favelas do país, 3,4 milhões estão no estado de São Paulo, com um potencial de consumo que chega a 41 bilhões de reais por ano.
Para explorar todo esse potencial e mostrar as boas ideias nascidas nas comunidades, a feira de negócios foi realizada pela primeira vez no ano passado na capital paulista, mas com caráter nacional, reunindo ideias de empreendedores de favelas de todo o Brasil. Dos mais de 20 000 interessados em apresentar suas ideias, 300 puderam mostrar os seus projetos, de alimentação à tecnologia. Destes, dez foram selecionados para participar de um reality show. O vencedor, que ganhou um prêmio de 80 000 reais, foi o aplicativo Todos por Uma, desenvolvido por Mateus Lima, de 24 anos. Trata-se de uma ferramenta que permite às mulheres vítimas de agressão pedir socorro e avisar os contatos cadastrados. O jovem nascido numa área pobre de Cumbica, em Guarulhos, na Grande São Paulo, agora sobrevive da ideia que criou, transformando-a em uma startup. “Por meio dos aportes (de investidores) consigo me manter”, afirma. (leia mais abaixo).
Os amigos Diogo Bezerra, de 30 anos, e Tauan Souza Matos, de 29, do Jardim Pantanal, na Zona Leste, são outros jovens da periferia que tiveram uma ideia inovadora e seu negócio impulsionado na participação da Expo Favela. Criaram uma escola que ensina programação utilizando a linguagem usada pelos jovens da periferia. Em outro caso, depois de receber 200 000 reais de aporte do Shark Tank Brasil, Diego Ramos, de 28 anos, vendeu a sua parte na escola de inglês que abriu e decidiu criar a Somar Skateboard’s, voltada a fo- mentar talentos do skate da periferia para que consigam gerar renda com trabalhos relacionados ao esporte. Já Silvana Bento, de 46 anos, deixou dois empregos na área da saúde para vender calcinhas para mulheres trans, que ela mesma criou sem sequer saber pregar um botão. Hoje a marca tem, entre as clientes, Liniker e Linn da Quebrada, e é o sustento de toda a família. “Os empreendedores de favelas não querem cesta básica. Querem trabalhar, ganhar o seu próprio dinheiro e comprar o que quiserem”, diz Celso Athayde.
Estudioso dos hábitos de consumo das favelas há mais de vinte anos, Renato Meirelles, fundador do Data Favela e colunista de VEJA, faz coro à voz do criador da Expo Favela. “Muitos profissionais (das favelas) não conseguem ganhar mais do que um ou dois salários mínimos. E o empreendedorismo das favelas vem daí, de não querer bater cartão e da necessidade de ampliar os rendimentos e transformar os seus sonhos em realidade.”
Meirelles explica que o conceito de inovação das favelas não está relacionado a novas tecnologias, tal como é a percepção do senso comum. Ele cita como exemplo os serviços de entrega, como o Favela Llog (leia mais abaixo), que colocaram os moradores de favelas na rota das compras de comércio on-line. “É uma inovação prática, uma tecnologia social própria, que é fundamental tanto para a sobrevivência econômica quanto para as empresas”, diz. Questionado a respeito da sobrevivência desses negócios, ele afirma que o empreendedor da favela passa pelas mesmas dificuldades daqueles “do asfalto”, porém, possui algumas características que o diferenciam. “A primeira é a resiliência de continuar insistindo e não desistir. E a outra é “sevirômetro” (neologismo para capacidade de se virar em situa-ções difíceis), já que eles têm desafios constantes”, diz.
Na abertura do evento, no dia 17, Meirelles apresentará a Data Favela 2023, o mais amplo estudo sobre as favelas brasileiras. Entre as tendências detectadas, está a retomada do sonho de cursar uma universidade. Outra é uma maior intenção de ter um negócio próprio, que chegou a 76% em 2022, explicada pelo maior otimismo em rela- ção à economia e à participação feminina. “Estamos vindo de um período de pandemia em que muitas delas acabaram botando o marido para fora de casa. E elas acreditam numa autonomia financeira”, diz Meirelles. Um dado curioso é que a maior parte dos que abriram um novo negócio (54%) o fez pela oportunidade, e não pela necessidade de gerar renda para se manter.
Toda essa expectativa em torno de os empreendedores mostrarem o seu próprio negócio para potenciais investidores levou os organizadores a agigantarem o evento já em sua segunda edição. Neste ano, em vez de um único evento, a Expo Favela terá edições regionais em mais de vinte capitais. A primeira em São Paulo, com investimento previsto de 7 milhões de reais na organização. Os melhores trabalhos de cada uma dessas regionais serão avaliados novamente em uma etapa nacional, prevista para acontecer no fim deste ano, em São Paulo.
Inovação: Silvana (de vermelho) criou peça sem saber costurar
Calcinhas para mulheres trans viram negócio de família
Sem mesmo saber pregar um botão, conforme ela mesma diz, Silvana Bento, de 46 anos, criou uma linha de roupas íntimas para mulheres trans que hoje é o sustento de toda a sua família. O produto carro-chefe é uma calcinha para “aquendar a neca”, que é o termo usado pela comunidade LGBTQIAP+ para se referir ao ato de esconder o pênis e os testículos para que eles não criem volume na roupa, e que tem entre suas clientes Linn da Quebrada.
A ideia nasceu à época em que ela era técnica em homoterapia e trabalhava num banco de sangue. O que chamou a atenção de Silvana foi saber que várias mulheres trans iam parar no hospital vítimas de insuficiência renal e infecção urinária, e muitas eram obrigadas a fazer hemodiálise ou se submeter a cirurgias. “Isso me chamou muito a atenção e acabei perguntando para médicos, enfermeiros e conversando com as próprias mulheres trans. Descobri que era pelo fato de não se hidratarem corretamente, ou mesmo terem que segurar o xixi durante horas, já que usavam fitas adesivas e até supercolas para aquendar a neca”, diz.
Um desses casos, o de uma mulher trans chamada Luiza, morreu ao seu lado. A cena nunca saiu de sua cabeça, principalmente no trajeto do hospital até sua casa, em Guaianazes, no extremo da Zona Leste. Até que um certo dia, mesmo sem saber desenhar, criou um rascunho de uma calcinha com uma espécie de bolsa que armazenava a genitália sem marcar a roupa. O desafio maior foi encontrar alguém que colocasse a ideia em prática, já que nenhuma costureira da vizinhança topou costurar a peça. “Eu mesma peguei uma saia de tule de uma das minhas filhas, recortei e fiz o molde”, diz.
A única pessoa que topou fazer o produto foi uma designer de moda que tinha uma pequena fábrica de bonecas de pano e bichos de pelúcia. Quem também ajudou foi um dos filhos, Pietro Bento, um homem trans, que chamou algumas amigas da comunidade LGBTQIAP+ para experimentar o produto. As encomendas começaram a pipocar e então Silvana trocou a área da saúde pela da moda. Nascia então a Truccs, que chegou a ter uma loja física na Rua Augusta, mas teve que fechar as portas devido à pandemia.
As vendas continuaram de forma on-line e o negócio vingou. “O ganha-pão de toda a minha família vem das calcinhas”, diz. Uma das filhas foi estudar design de moda. Já o marido é seu motorista particu- lar e o filho mais novo, de 8 anos, ajuda com os vídeos e imagens dos produtos usados nas divulgações nas redes.
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