Técnica em hemoterapia, Silvana Bento, 46 anos, fazia plantão noturno em dois hospitais de São Paulo para complementar a renda quando uma questão a intrigou: por que a maioria das mulheres trans que chegava às instituições de saúde precisava de cirurgia nos rins ou de hemodiálise?
— Chamou minha atenção: por que sempre essas duas patologias? — conta ela, que trabalhava nos bancos de sangue.
Ao questionar médicos, enfermeiros e pacientes, entendeu a situação: por ficarem com o pênis preso entre as pernas, elas não tinham o costume de ir ao banheiro durante o dia. Para fazer a “aquendada” (termo que descreve o ato de esconder o órgão genital), muitas mulheres trans utilizavam fita adesiva e até mesmo cola instantânea de alta resistência. Como não é um trabalho fácil de desfazer, muitas optavam por, inclusive, não beber água, evitando assim a necessidade de urinar fora de casa e, infelizmente, causando danos à saúde.
— Muitas saíam de casa pela manhã e voltavam só à noite. O rim necessita de água. Tudo de ruim que tem no corpo é eliminado na urina. Se você não faz xixi, tudo isso volta para o organismo. Uma vez ou outra não tem problema, mas, se você faz todos os dias, o dano é maior. Eu vinha percebendo isso desde 2008. Antes não havia meninas trans no meu convívio. Quando comecei a perceber, pensei: nossa, é tão comum assim? — relata.
O momento em que Silvana decidiu, de fato, investir em uma criação para dar conforto e qualidade de vida a essas mulheres foi quando uma delas, que estava em hemodiálise, morreu ao seu lado.
— Ela me fez um sinal de beleza com as mãos e deu o último suspiro. Então pensei: tenho que fazer alguma coisa — lamenta.
Em 2016 patenteou a invenção: uma calcinha em formato de funil, com espaço para “aquendar” de maneira mais prática e confortável. Sem fita, sem cola, sem esforço: apenas “truques”. Daí vem o nome da marca: Trucss, a primeira a pensar nesta demanda no Brasil.
— É uma questão de saúde pública e dignidade humana — resume.
O processo até colocar a ideia em prática não foi fácil. Primeiro porque, para fazer o molde das calcinhas, Silvana precisava experimentar as peças em pessoas com pênis. A ajuda veio da filha, que hoje é sua sócia:
— Ela tem muitos amigos e eu pagava R$ 100 para eles experimentarem e, assim, via o que precisava melhorar. Hoje, minhas peças têm 16 diferentes tamanhos — explica.
Em 2017, saiu dos empregos nos hospitais para se dedicar integralmente à produção das calcinhas. Investiu nas redes sociais, por onde até hoje faz a maior parte de suas vendas. De boca em boca, a Trucss foi ganhando fama e chegou até ao Big Brother Brasil. A cantora Linn da Quebrada, que participou da edição de 2022 do programa, fez um pedido especial uma semana antes de ser confinada.
— Fui pega de surpresa. A Linn já era minha cliente antes do BBB. Porém, quando ela foi entrar, fez um pedido com urgência em uma sexta-feira. Trabalho por encomenda, então você imagina a correria. Entregamos no domingo à noite. Na outra semana ela entrou no programa — lembra ela, que também já vendeu seus produtos para a cantora Gloria Groove.
A calcinha mais tradicional da marca custa R$ 70, mas as peças também têm opções da linha de moda praia e lingeries mais elaboradas. A Trucss entrega em todo o Brasil e, inclusive, já fez algumas vendas internacionais.
Outra dificuldade que Silvana encontrou ao colocar em prática a ideia foi a mão de obra. Por trabalhar sob encomenda, ela não confecciona as peças em fábrica, o que demanda pessoas que aceitem costurar as peças à mão.
— Encontrava senhoras cristãs que, quando ficavam sabendo para o que era (a costura), dispensavam o serviço. Me agrediam, diziam que eu ia para o inferno. Agora, estou há três anos e meio com uma costureira que tem o mesmo propósito que eu — conta.
Esperança para o futuro
Em mais um passo progressista, Silvana recentemente apresentou um projeto e conseguiu patrocínio da ONU Mulheres para ensinar mulheres trans a costurar as calcinhas da Trucss. O projeto deve iniciar daqui cerca de dois meses.
— Vou fazer um curso básico de seis meses para que, se futuramente eu vir abrir uma fábrica, já ter a mão de obra especializada, unindo assim o útil ao agradável. Também por uma questão de empregabilidade das mulheres trans — celebra.